Ali Dia foi um daqueles agraciados pela vida que realizou, mesmo por um tempo curtíssimo, seu sonho de infância. Tudo graças a um telefonema de uma estrela e à sucessão de acasos. Por 53 minutos, ele foi o atacante do Southampton em um jogo da prestigiada Premier League de futebol em 1996.
George Weah, então melhor jogador do mundo eleito pela Fifa, ligou para Graeme Souness recomendando a contratação do seu primo Ali Dia, atacante de 22 anos da seleção senegalesa. Por confiança e necessidade, o treinador do Southampton acolheu o jogador, que passou a treinar com a equipe, sem impressionar ninguém pelo seu futebol.
A escassez de atacantes o fez ser relacionado para a partida contra o Leeds United e, aos 29 minutos, veio a chance de substituir o lesionado capitão do time. Ali Dia entrava em campo com a camisa 33 para fazer o que muitos meninos como ele sonham: jogar futebol profissional na liga inglesa.
Em campo, um desastre. Seu desempenho destoava dos demais e não conseguiu produzir nada que se salvasse. Só embaraços e uma substituição precoce. E havia um motivo: Ali Dia era na verdade um estudante de economia de 31 anos que jogava em times amadores da Inglaterra.
O telefonema que enganou o treinador foi um trote dado por um colega de faculdade, nada de Weah. Foi o que possibilitou duas semanas de treinos, a carreira mais curta da Premier League e a realização de um sonho de infância.
Sonhos e desejos
Qual o seu sonho? A resposta a essa pergunta via de regra é a síntese dos seus desejos. Ele pode ser material, emocional, social, não importa. Sonhar diz muito mais sobre você do que sobre seu objeto de aspiração.
A relação entre sonho e desejo foi dada por Freud em 1899 no livro “A interpretação dos sonhos”. É dormindo que o nosso cérebro dá o acesso fantasioso a questões reprimidas em nossos inconsciente. Elas vêm à tona durante o sono para dizer um pouco mais sobre nós mesmos.
O que você faria pelo seu sonho? Ali Dia realizou o dele.
Interpretar narrativas dos sonhos é uma das bases da Psicanálise e uma das formas mais antigas dos povos de criar sentidos para suas experiências mentais durante a noite. Almas vagando, mensagem dos deuses, profetização, previsão do futuro. Cada cultura ao longo da história deu algum significado aos sonhos que nos acompanham. Projetamos nossa existência nesses pensamentos que só surgem quando retiramos os estímulos corpóreos da nossa atividade cerebral e permitimos à nossa mente ser criativa, livre e sincera.
Por isso, no pesadelo, o bandido é imaginário, mas o medo que se sente é verdadeiro. Voamos, nos teletransportamos, conversamos em outras línguas, visitamos e criamos lugares porque não precisamos do real para nos fazer entender. No sonho, somos, antes de qualquer coisa, livres e capazes.
Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta.
Carl Jung
Nos dias de hoje, olhamos para os sonhos como uma meta de vida, talvez uma dose de utopia necessária para nos manter sempre em marcha. É muitas vezes o extraordinário que não se realiza, porque seu lugar é de fato no sonho, no aconchego do travesseiro aos braços de Morfeu.
O sonho dos outros
Carlos Kaiser foi um jogador de futebol com passagens por times de expressão no futebol nacional nos anos 1980, como Vasco, Botafogo, Flamengo, Palmeiras e por equipes da França, Portugal e Estados Unidos. O detalhe é que ele nunca jogou de verdade.
Durante vinte anos de carreira, simulou lesões, conseguiu atestados com um amigo dentista, criou brigas e confusões para ser expulso antes de entrar em campo e, sobretudo, fez amizades com jogadores e dirigentes para ganhar deles compreensão, simpatia e acesso aos prazeres da noite, em que se tornou especialista. Era a garantia de ser recomendado, ter contratos, receber salários e ser pouco questionado quanto ao seu inexistente futebol.
Seu sonho de menino não era ser jogador profissional, mas estudar e se tornar um acadêmico. Mas a vida dura e a ambição de outras pessoas o jogaram nos gramados, associado a empresários que ficavam com boa parte do seus salários. Hoje é um personagem folclórico, que conta suas estripulias e de vez em quando as dores de ter vivido o sonho dos outros.
Quem é você no seu sonho?
O que para muitos é a realização das mais sinceras fantasias de criança, para Kaiser foi o fardo que teve que carregar por decisões que não foram suas. O sonho é uma experiência muito subjetiva, que só quem sonha tem a dimensão dos seus sentidos. Pois nem sempre estar em uma posição de destaque significa viver os mais caros desejos do nosso eu.
Conteúdo manifesto
Seria o sonho a antítese da realidade? A profusão de imagens, eventos, ideias que só acontecem na nossa cabeça no sono têm lugar no mundo aqui fora? O universo caleidoscópico da nossa cabeça tem se manifestado na produção humana de formas muito particulares.
Decifrar sonhos, para muitos, é ouvir um recado do sobrenatural, da intuição. É uma forma segura de agir no futuro em benefício próprio. O neurocientista Sidarta Ribeiro resgata a ideia do sonho como um oráculo, uma forma de o nosso cérebro simular realidades e oferecer saídas probabilísticas para diversas situações, que podem ou não vir a acontecer. O sonho é apenas um dos futuros possíveis.
Salvador Dali e os surrealistas tiveram os sonhos como método na arte, com a suspensão temporária da razão para liberar a mente para criar imagens oníricas só possíveis em nossos mais íntimos devaneios. A neurociência associa os sonhos à organização das nossas memórias, o momento em que consolidamos a nossa vivência e levamos como registro para o resto da vida.
Nossa metáfora contemporânea coloca o sonho como um delírio real, o que perseguimos na vida com toda a razão possível, fingindo que ignoramos os mecanismos de repressão da nossa mente. A esperança de conseguir alcançar algo é como um sonho, sem limites e amarras, com todas as possibilidades. É um milagre onírico que se faz real.
O que se mantém na profundezas do nosso sono? A obra de Dali nos dá pistas.
Vivemos como nas ideias de Freud, navegando em um conteúdo manifesto à espera de que algo latente salte à nossa consciência e nos encontre preparados para o novo e desejado. Querer é poder (mesmo quando a gente não pode). Sonhar é colocar metas subjetivas de felicidade, preparando nosso eu para deixar de reprimir e poder vivenciar aquilo que realmente queremos.
Seja tornar-se jogador de futebol ou um acadêmico, a riqueza da nossa experiência de mundo passa por sonhar, dar sentidos às narrativas da nossa mente e buscar, incessantemente, diminuir as censuras que nos impedem de chegar lá. Sonhamos e desejamos, tudo misturado em uma profusão de imagens, sons e cores. É nossa senha para ser livre e – continuar a – viver.
Ah que saudade desses textos incríveis. Sigamos sonhando!